quarta-feira, maio 04, 2011

CONSCIENTIZAR OU SENSIBILIZAR

            

CONSCIENTIZAR         OU                  SENSIBILIZAR 



Debater, discutir, explicar, esclarecer e informar parecem noções cada vez mais fora de moda. O que agora parece ser mais importante é: sensibilizar. Um pouco por todo o lado, e não apenas nas escolas, se multiplicam as acções de sensibilização. São acções de sensibilização ambiental, programas de sensibilização para os perigos do consumo de drogas, sessões de sensibilização contra o racismo, e assim por diante. Vejo quase todos os dias passar por mim viaturas da empresa municipal de águas e resíduos da cidade onde vivo com o slogan “Educar e sensibilizar.” Nas conversas televisivas ouvimos frequentemente dizer que é necessário sensibilizar as pessoas para fazer mais exercício físico, para participar mais activamente na vida pública, para a necessidade de poupar, para a violência doméstica, etc. Até nas planificações das actividades lectivas das mais variadas disciplinas a sensibilização aparece. Fica-se com a ideia de que quando se pretende promover ou inibir certas atitudes, opiniões ou comportamentos nas pessoas, o que há a fazer é, sobretudo, sensibilizá-las para isso. A sensibilização parece ser a grande ideia pedagógica dos nossos dias. Defendo que esta ideia é profundamente errada e pedagogicamente desastrosa: educar não é, nem deve ser, sensibilizar.
Vale a pensar no que significa “sensibilizar.” Como a própria palavra indica, sensibilizar é levar as pessoas a sentir o que antes disso não sentiam. Ou também levar as pessoas a sentir as coisas de um modo diferente. É, no fundo, intervir nas emoções ou sentimentos das pessoas. Isto torna clara a diferença entre, por um lado, a sensibilização e, por outro, a informação e a discussão racional. Ao contrário do que se passa com a sensibilização, nem o acto de informar nem a discussão racional se apoiam na emoção.
A sensibilização aproxima-se, assim, da publicidade e da propaganda. Também estas assentam numa espécie de apelo emocional, procurando induzir certos comportamentos e atitudes: consumir um dado produto ou aderir a uma dada ideia. Sensibilizar as pessoas não é, pois, o mesmo que facultar-lhes informação ou esclarecê-las. Nesse sentido, é irrelevante que a adesão se apoie numa avaliação crítica e racional do que está em causa. Tudo o que se procura é que a adesão seja efectiva. Aliás, o convite a uma apreciação crítica pode mesmo ser prejudicial. É o que, de resto, se verifica a maior parte das vezes nas chamadas “acções de sensibilização,” que consistem normalmente na produção e repetição de slogans e spots publicitários com imagens e música atraentes (no caso de se estar a promover um dado comportamento) ou com imagens e música perturbadoras (no caso de se estar a censurar um dado comportamento), mas também de actividades tão esclarecedoras como fazer desenhos, cantar em coro palavras bonitas, organizar espectáculos e vigílias, e outras iniciativas do género.
O problema é que nada disso tem qualquer valor formativo, pois não só não promove a autonomia das pessoas, como tende a atrofiá-la, reprimindo a sua capacidade crítica. É confundir publicidade e propaganda com pedagogia. Recorrer à publicidade como ferramenta pedagógica é um contra-senso, pois não se formam pessoas autónomas e informadas com manipulação emocional, mas sim com informação rigorosa, esclarecimento técnico e debate de ideias. Ora, a publicidade não se destina a formar pessoas mas a vender produtos, sejam eles sabonetes, telemóveis, livros, ideias ou comportamentos e atitudes. A pedagogia claramente não é nem deve ser uma actividade publicitária ou propagandística.
Poder-se-á argumentar que nem sempre as pessoas estão atentas aos problemas e que, por vezes, é preciso encontrar maneira de as fazer olhar para o sítio certo. Sensibilizá-las seria, então, uma maneira de despertar as pessoas para os problemas, obrigando-as a confrontar-se com eles. Neste caso, o discurso publicitário poderia ensinar-nos a levar as pessoas a ver o que não queriam ou não conseguiam ver e isso seria apenas um primeiro passo sem o qual não poderia haver, posteriormente, verdadeiro esclarecimento. Seria, afinal, uma boa maneira de pôr a eficácia das ferramentas publicitárias ao serviço da pedagogia, em vez de substituir uma coisa pela outra.
Mas isto assenta numa incompreensão da natureza da pedagogia. A pedagogia não é o processo pelo qual se leva alguém a aderir a determinadas ideias ou a adoptar determinadas atitudes, por muito boas que nos pareçam. A pedagogia é o processo pelo qual se ajuda alguém a encontrar, de forma esclarecida, o seu caminho e a formar as suas próprias ideias, ainda que estas possam ser partilhadas por outros. Assim, o verdadeiro pedagogo não é aquele que, por exemplo, procura convencer o aprendiz das vantagens da democracia, mas aquele que convida o aprendiz a discutir de forma racional as vantagens e desvantagens da democracia, de modo a tirar e justificar as suas próprias conclusões. Pôr os jovens a papaguear slogans que nunca avaliaram criticamente pode ser muito divertido, mas não é certamente formativo e é duvidoso que seja eficaz a longo prazo. Tive um bom exemplo disso há alguns anos, quando foi pedido às escolas secundárias de todo o país que dedicassem um dia de sensibilização contra o uso de drogas. Foi sugerido a cada professor que usasse quinze minutos das suas aulas para falar do assunto e que, no fim, estes escolhessem a melhor frase para escrever e afixar na porta da sala de aula. Alguns alunos, já devidamente sensibilizados, ficaram algo indignados quando levantei reservas à frase escolhida: “A droga não dá prazer.” Expliquei que talvez fosse melhor escolher uma frase verdadeira. Perante a surpresa quase geral, acabei por perguntar por que razão haveriam as pessoas de se drogar, se não retirassem qualquer prazer disso. A resposta foi um silêncio embaraçoso, a que nenhuma sensibilização ajudou a dar resposta. Bom, sempre se aproveitou o impasse para começar, então, a pensar por que razão consumir drogas é uma má ideia, apesar de até poderem dar prazer.
O leitor mais renitente poderá conceder que as acções de sensibilização não passam de uma forma paternalista de ver as coisas e que, portanto, não respeitam a autonomia das pessoas. Mas pode, ainda assim, insistir que o paternalismo nem sempre é inadequado, sendo até a única maneira de educar jovens ainda imaturos. Se o paternalismo fosse sempre mau, os pais estariam a fazer mal às suas crianças quando procuram induzir nelas certas ideias ou atitudes. Ora, isso parece descabido: os pais não estão sempre a fazer-lhes mal ao agir desse modo; logo, o paternalismo não é sempre mau, e a sensibilização é aceitável.
É verdade que nem todo o paternalismo é injustificado e o caso apontado mostra-o. Mas esse paternalismo assenta na legitimidade conferida pelo amor e protecção paternais. E só nisso. De resto, mesmo as crianças têm muito a ganhar se as coisas lhes forem sendo paulatinamente explicadas em vez de lhes serem docemente — por vezes, duramente — impostas.
Frequentemente se apontam defeitos ao período revolucionário vivido em Portugal imediatamente após o 25 de Abril. Mas há que reconhecer que, entretanto, também perdemos coisas boas desse tempo. Ao menos não estávamos constantemente expostos a tanta acção de sensibilização. Em vez disso, havia muitas sessões públicas de esclarecimento e de debate aberto, como então eram designadas. Pode-se dizer que é só uma questão de palavras. Ainda assim, parece que, nem que seja nas palavras, havia bastante mais respeito pela autonomia das pessoas e nos tratávamos mutuamente como pessoas crescidinhas.

Aires Almeida

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