segunda-feira, maio 17, 2010

Sobre Educação Autor: Arthur Schopenhauer


Tradução: André Díspore Cancian
Fonte: Parerga e Paralipomena, pp. 627-33

§ 372

Devido à natureza de nosso intelecto, ideias gerais devem surgir por meio da abstração a partir de observações particulares; estas devem, portanto, existir antes das primeiras. Se isso de fato ocorre, como no caso do homem cujo aprendizado baseia-se exclusivamente em sua própria experiência — que não possui professor nem livros —, o indivíduo sabe muito bem quais de suas observações particulares pertencem a, e são representadas por, cada uma de suas ideias gerais. Possui uma perfeita familiaridade com ambos os lados de sua experiência e, assim, lida corretamente com tudo o que se apresenta diante dele. Esse pode ser denominado o método natural de educação.

Por outro lado, o método artificial consiste em ouvir o que os demais dizem, em aprender e em ler, de modo a abarrotar a mente com ideias gerais antes de possuir qualquer familiaridade aprofundada com o mundo em si. Então se espera que posteriormente a experiência forneça as observações particulares relativas a essas ideias gerais; mas, até que isso ocorra, as ideias gerais são aplicadas erroneamente, os homens e as coisas são julgados sob uma ótica falsa, vistos sob uma ótica equivocada, e são abordados de maneira incorreta. Essa educação perverte a mente. Isso explica por que, em nossa juventude, após muito aprendizado e leitura, ingressamos no mundo em parte ignorantes sobre as coisas e em parte equivocados a seu respeito; assim, num instante nosso comportamento é guiado por uma ansiedade nervosa, num outro por uma confiança infundada. A razão disso é o fato de nossas mentes estarem repletas de ideias gerais que tentamos aplicar, mas quase nunca conseguimos. Esse é o resultado de agirmos em direta oposição ao desenvolvimento natural da mente, obtendo as ideias gerais primeiro e as observações particulares depois: colocamos a carruagem antes dos cavalos. Em vez de desenvolver a capacidade de discernimento da própria criança, ensinando-a a julgar e a pensar por si própria, o professor devota todas as suas forças a entulhar sua mente com ideias prontas de outros indivíduos. Nessa situação, essas visões equivocadas sobre a vida, que resultam da aplicação incorreta das ideias gerais, terão de ser posteriormente corrigidas por longos anos de experiência, e é muito raro que o sejam por completo. Essa é a razão pela qual tão poucos eruditos são dotados de bom senso, algo que é muito comum encontrarmos em indivíduos que não receberam qualquer instrução.

§ 373

Familiarizar-se com o mundo pode ser definido como o objetivo de toda educação; segue-se que devemos ter um cuidado especial com o início desse processo, para assim adquirirmos o conhecimento em sua ordem correta. Como demonstrei, isso significa principalmente que as observações particulares de cada coisa devem vir antes das ideias gerais a seu respeito; além disso, que ideias estreitas e limitadas virão antes das mais abrangentes; e também que todo o sistema de educação seguirá os passos que as próprias ideias precisam dar no curso de sua formação. Contudo, assim que se remove algum elemento dessa sequência, o resultado são ideias gerais deficientes e, a partir dessas, ideias gerais falsas; por fim, surge uma visão de mundo distorcida que é peculiar ao indivíduo — uma visão que quase todos abraçam por algum tempo, e a maioria dos homens por toda a vida. Todos os que voltarem seus olhares às suas próprias mentes perceberão que foi apenas após atingir uma idade bastante madura, e às vezes quando menos esperavam, que conseguiram alcançar uma compreensão clara de muitos assuntos que, afinal, não eram tão difíceis ou complicados. Até então, havia pontos de seu conhecimento que ainda eram obscuros devido às aulas que foram omitidas na fase inicial de sua educação, seja qual fosse seu tipo — artificial, por meio de professores, ou do tipo natural, baseado na experiência pessoal.

Assim, deveríamos tentar entender a sequência estritamente natural do conhecimento, para que então façamos a educação acompanhá-la metodicamente, e assim as crianças tornem-se familiarizadas com a marcha do mundo, sem ter suas mentes abarrotadas de ideias equivocadas, que muitas vezes jamais conseguirão abandonar. Se esse procedimento fosse adotado, deveríamos ter um cuidado especial em evitar que crianças utilizassem palavras que não compreendem claramente. Mesmo crianças têm frequentemente a tendência fatal de se satisfazer com palavras em vez de tentar entender as coisas — um desejo de decorar frases capazes de tirá-las de dificuldades quando necessário. Tal tendência ainda permanece depois que crescem, e essa é a razão pela qual o conhecimento de muitos eruditos é mera verborragia. Entretanto, o empenho essencial deve ser para que as observações particulares venham antes das ideias gerais, e nunca vice versa, como é o caso normal e infelizmente; como se uma criança viesse ao mundo a partir dos pés, ou um verso fosse escrito a partir da rima! O método corrente consiste em enxertar ideias e opiniões — que são, no estrito senso da palavra, preconceitos — na mente da criança, enquanto esta ainda possui um repertório muito limitado de observações particulares, e ela então aplica esse aparato de ideias-prontas às observações particulares e à experiência. Em vez disso, as ideias gerais e os julgamentos deveriam ter se cristalizado a partir das observações particulares e da experiência. Ao ver o mundo por si próprio, o indivíduo tem uma percepção rica e variada que não pode, naturalmente, competir com a brevidade e rapidez do método que emprega ideias abstratas para finalizar o assunto rapidamente por meio de generalizações. Será necessário um longo tempo para corrigir essas ideias preconcebidas, uma tarefa que talvez nunca seja concluída; pois sempre que algum aspecto da experiência contradiz essas noções preconcebidas, as evidências são rejeitadas de antemão como unilaterais, ou são simplesmente negadas; os homens fecham seus olhos às evidências apenas para que seus preconceitos permaneçam intactos. Desse modo, muitos homens carregam um fardo de equívocos ao longo de suas vidas inteiras — muletas, caprichos, fantasias, preconceitos, os quais por fim se tornam ideias fixas. O fato é que o indivíduo nunca tentou elaborar suas ideias fundamentais por si mesmo a partir de sua própria experiência de vida, de seu próprio modo de ver o mundo, pois recebeu todas as suas ideias já prontas de terceiros; e é isso o que torna esse indivíduo — e tantos outros! — tão raso e insípido. Em vez disso, deveríamos cuidar para que as crianças fossem educadas dentro de parâmetros naturais. Só devemos introduzir conceitos nas mentes das crianças por meio da observação, ou ao menos verificá-los dessa maneira. Como resultado, a criança assimilaria poucos conceitos, mas estes seriam bem fundamentados e precisos. Aprenderia então a medir as coisas não por critérios alheios, mas pelos próprios; e assim se esquivaria de um milhar de preconceitos e caprichos, os quais não precisarão ser posteriormente erradicados pelas valiosas lições da escola da vida. Desse modo, sua mente estaria desde sempre habituada a uma visão clara e a um conhecimento profundo; empregaria seu próprio julgamento e teria uma visão imparcial dos fatos.

Crianças em geral não devem entrar em contato com todos os detalhes da vida a partir da cópia antes de conhecê-los a partir do original. Assim, em vez de nos apressarmos em colocar livros em suas mãos, façamos com que se familiarizem, passo a passo, com as coisas — com as verdadeiras circunstâncias da vida humana. Acima de tudo, deveríamos nos esforçar para apresentá-las a uma visão clara da vida real, e educá-las para que sempre derivem seus conceitos diretamente do mundo real. Devem formar tais conceitos de acordo com a realidade, e não coletá-los de algum outro local — livros, contos de fada ou opiniões alheias — para então empregá-los diretamente e já prontos à vida real. Pois, nessa situação, suas mentes estarão repletas de quimeras, e assim verão as coisas sob uma luz falsa, ou tentarão inutilmente remodelar o mundo para que se adéque às suas visões, trilhando caminhos equivocados não apenas na teoria, mas também na prática. É incrível a quantidade de prejuízo que se causa por semear quimeras em mentes ainda jovens, e pelos preconceitos decorrentes, pois a educação que recebemos do mundo e da vida real precisará então ser empregada sobretudo para erradicar tais preconceitos. A resposta, dada por Antístenes segundo Diógenes Laércio, também consiste nisto (VI. 7): Interrogatus quaenam esset disciplina maxime necessaria, Mala, inquit, dediscere. [quando interrogado sobre qual era a disciplina mais necessária, respondeu: desaprender o mau.]

§ 374

Como erros instilados precocemente em geral ficam gravados profundamente, e como a capacidade de julgamento é a última faculdade intelectual a amadurecer, nenhuma criança com menos de quinze anos deve ser instruída em teorias e doutrinas passíveis de grandes erros. Devem, portanto, ser mantidas à distância de toda filosofia, religião e visões gerais de toda espécie, sendo-lhes permitido dedicar-se apenas aos assuntos nos quais nenhum erro é possível, como a matemática, ou nos quais não são perigosos, como as línguas, as ciências naturais, a história e assim por diante. E, em geral, as disciplinas a serem estudadas em cada período da vida devem se limitar àquilo que a mente seja capaz de entender perfeitamente naquele período. Infância e juventude constituem a época para a coleta de materiais, para a aquisição de uma familiaridade especial e profunda com as coisas individuais e particulares. Nesses anos é ainda muito cedo para formar visões de grande amplitude; as explicações últimas devem ser deixadas para um momento posterior. Como a capacidade de julgamento pressupõe maturidade e experiência, esta deve ser deixada a si própria; e deve-se cuidar para não antecipar sua atividade inculcando preconceitos, pois isso a paralisará para sempre.

Por outro lado, durante a juventude a memória deve ser especialmente exercitada, pois nessa época é mais vigorosa e mais tenaz. Porém, isso deve ser feito com grande cautela e prudência, visto que as lições bem aprendidas na juventude jamais são esquecidas, e esse solo precioso deve ser cultivado de modo a produzir o máximo possível de frutos. Se observarmos quão profundamente ficam gravados em nossa memória aqueles que conhecemos nos primeiros doze anos de nossas vidas, e como os eventos desses anos, e em geral tudo o que vivenciamos, ouvimos e aprendemos nessa fase, ficam para sempre gravados na memória, torna-se perfeitamente natural a ideia de basear a educação nessa receptividade e tenacidade da mente jovem, guiando-a estrita, metódica e sistematicamente de acordo com tais preceitos e regras. Pois bem, como ao homem só são concedidos alguns anos de juventude, e como a capacidade da memória em geral, e especialmente no indivíduo, é sempre limitada, torna-se imprescindível alimentá-la com o que há de mais essencial e vital em todas as áreas do saber, a despeito de todo o mais. A seleção desse conteúdo deve ser feita, e seus resultados fixados, após a mais madura deliberação das mentes mais capazes e dos mestres de cada área do conhecimento. Tal seleção teria de basear-se num exame cuidadoso a respeito do que é necessário e importante que um homem saiba em geral, e do que é importante e necessário que saiba numa profissão particular ou numa área específica do saber. O conhecimento do primeiro tipo teria de ser classificado, num estilo enciclopédico, em cursos graduados, adaptado ao grau geral de cultura que se espera de um homem na dada circunstância em que se encontra. Começaria com um curso limitado aos pré-requisitos da educação primária, e terminaria com os assuntos abordados pelo pensamento filosófico. A seleção do segundo tipo de conhecimento, entretanto, teria de ser deixada aos verdadeiros mestres de cada área. O sistema como um todo proporcionaria um cânon para a educação intelectual, o qual, naturalmente, teria de ser revisado a cada dez anos. Com tal organização, seria aproveitado ao máximo o poder de memorização da juventude, proporcionando um excelente material à capacidade de julgamento que virá num momento futuro.

§ 375.

A maturidade do conhecimento, isto é, a perfeição que este pode atingir em cada indivíduo, consiste no fato de que foi estabelecida uma conexão precisa entre as ideias abstratas e a capacidade de observação. Isso significa que cada uma de suas ideias abstratas baseia-se, direta ou indiretamente, na observação, e apenas por meio dela um conceito chega a possuir qualquer valor. Também envolve a capacidade de relacionar corretamente cada observação à ideia abstrata correspondente; tal maturidade exige tempo, pois nasce da experiência. O conhecimento que derivamos de nossa própria observação é normalmente distinto do que adquirimos por meio de ideias abstratas; um chega a nós pelo processo natural, o outro por meio da instrução e do que os demais nos dizem, seja isso bom ou ruim. O resultado é que, em nossa juventude, há em geral pouca relação ou correspondência entre nossas ideias abstratas, que são fixadas por meras palavras, e o verdadeiro conhecimento que obtivemos por meio da observação. Apenas gradualmente ambos se aproximam e se corrigem mutuamente; e só existe maturidade no conhecimento depois que ocorre essa união. Tal maturidade ou perfeição do conhecimento é algo bastante independente da outra maior ou menor perfeição das faculdades individuais, algo que se mede não pela conexão entre os dois tipos de conhecimento, mas pelo grau de intensidade que atingem.

§ 376.

O tipo de estudo mais necessário ao homem prático consiste na aquisição de um conhecimento exato e profundo da verdadeira marcha do mundo. Mas, apesar de necessário, esse também é o mais exaustivo de todos os estudos, pois um homem pode atingir uma idade avançada sem ainda haver concluído essa tarefa — ao passo que, no domínio das ciências, já domina os fatos mais importantes ainda em sua juventude. Na aquisição desse conhecimento, as lições mais primárias e mais duras são aprendidas quando ainda se é principiante, isto é, na meninice e na mocidade; mas é frequente que mesmo o homem maduro tenha muito a aprender. Essa dificuldade é em si mesma grande, mas é duplicada pelos romances, que descrevem um estado de coisas e um curso de ações humanas que na verdade não existem. A juventude é crédula, e aceita tais visões da vida, que são assimiladas e se tornam parte de suas mentes. Desse modo, em vez de uma condição negativa de mera ignorância, temos um erro positivo — todo um tecido de noções equivocadas como ponto de partida; algo que posteriormente desvirtuará a escola da experiência, fazendo com que seus ensinamentos se mostrem a nós sob uma luz falsa. Se, antes disso, a juventude não tinha luz alguma para orientá-la, agora é ativamente desorientada pelo diz que diz; e isso acontece com ainda maior frequência quando se trata de raparigas. Por meio de romances, uma visão completamente falsa da vida é inculcada, despertando expectativas que jamais serão satisfeitas. Isso geralmente exerce uma influência funesta pelo resto de suas vidas. Nesse particular, aqueles que, durante sua juventude, não tiveram tempo nem oportunidade para ler romances, como artesãos, mecânicos e congêneres, têm uma clara vantagem. Há alguns poucos romances que são exceções, aos quais a censura acima não se aplica; na verdade, seu efeito é exatamente o oposto. Por exemplo, temos principalmente Gil Blas e as outras obras de Le Sage (ou seus originais espanhóis); temos também O Vigário de Wakefield, e até certo ponto os romances de Walter Scott. Don Quixote pode ser encarado como uma exibição satírica desse erro ao qual me refiro.