domingo, dezembro 06, 2009

Justiça distributiva



Como devem ser distribuídos os bens numa sociedade? […] Serão consideradas aqui três perspectivas-primeiro o utilitarismo, e depois as perspectivas não consequencialistas de John Rawls e Robert Nozick.
O utilitarismo clássico diz que deves maximizar o prazer em detrimento da dor. Se a nossa acção maximiza o bem, não importa se a distribuição do bem é igual ou desigual. Logo, o utilitarismo justifica em princípio um grande fosso entre ricos e pobres.
Todavia, os utilitaristas afirmam que na prática a sua perspectiva prefere uma distribuição mais igual. Considera uma pequena sociedade de ilhéus constituída por duas famílias. A família rica ganha 100 000 euros por ano e tem bens em abundância; a família pobre ganha 5 000 e confronta-se com a possibilidade de passar fome. Supõe que 2 500 euros da família rica vão para a família pobre. A família pobre beneficiaria enormemente, e a família rica dificilmente sentiria a falta desse dinheiro. A razão para isto é a diminuição da utilidade marginal do dinheiro; à medida que enriquecemos, cada euro extra faz menos diferença no nosso bem-estar. Passar de 100 000 euros para 97 500 não faz diferença, mas passar de 5 000 para 7 500 euros faz uma grande diferença. Assim, argumentam os utilitaristas, uma certa quantidade de riqueza tende a produzir mais felicidade total se for repartida mais imparcialmente. A nossa sociedade de ilhéus provavelmente maximizaria a sua felicidade total se ambas as famílias partilhassem igualitariamente a riqueza.
Apesar de parecer sensato, os não consequencialistas têm dúvidas em relação a isto. Se uma família retira mais prazer do que outra de uma certa quantidade de dinheiro, deveria por isso ter mais dinheiro (uma vez que isto maximizaria o prazer total)? Será isso justo? E mesmo que o utilitarismo conduza a juízos correctos sobre a igualdade, será que o faz pelas razões certas? É a igualdade boa, não em si, mas meramente porque produz o maior total de felicidade?
John Rawls propôs uma influente abordagem não consequencialista à justiça. Como podemos decidir o que é justo? Rawls sugere que a pergunta a fazer é esta: que regras mereceriam o nosso acordo em certas condições hipotéticas (a posição original)? Imagina que somos livres, lúcidos e conhecemos todos os factos relevantes — mas não conhecemos o nosso lugar na sociedade (se somos ricos ou pobres, negros ou brancos, de sexo feminino ou masculino). A limitação do conhecimento tem o objectivo de assegurar a imparcialidade. Por exemplo, se não sabemos qual é a nossa raça, não podemos manipular as regras para favorecer uma raça e prejudicar outras. As regras de justiça são as regras que mereceriam o nosso acordo nestas condições de imparcialidade.
Que regras mereceriam o nosso acordo na posição original? Rawls argumenta que escolheríamos estes dois princípios básicos de justiça (e cuja formulação simplifiquei):
Princípio da liberdade igual: A sociedade deve assegurar a maior liberdade para cada pessoa compatível com uma liberdade igual para todos os outros.
Princípio da diferença: A sociedade deve promover uma distribuição igual de riqueza, excepto se as desigualdades servirem como incentivo para benefício de todos (incluindo os menos favorecidos) e estiverem abertas a todos numa base igual.
O princípio da liberdade igual assegura coisas como liberdade de religião e liberdade de expressão. Rawls diz que tais direitos não podem ser violados a favor da utilidade social. O princípio da diferença é acerca da distribuição de riqueza. Na posição original poderíamos sentir-nos atraídos pela perspectiva igualitária segundo a qual todos deveriam ter exactamente a mesma riqueza. Mas desse modo a sociedade estagnaria, uma vez que as pessoas teriam poucos incentivos para fazerem coisas difíceis (como tornarem-se médicos ou inventores) que acabam por beneficiar todas as pessoas. Por isso, preferiríamos uma regra que permite incentivos.
De uma maneira geral, todos teriam a mesma riqueza numa sociedade rawlsiana — excepto para desigualdades (como pagar mais a médicos) que são justificadas como incentivos que acabam por beneficiar todas as pessoas, e que estão abertas a todos numa base igual.
Robert Nozick é o crítico mais duro do princípio da diferença de Rawls. A perspectiva que propõe é a da titularidade das posses justas. Esta perspectiva diz que tudo o que ganhas honestamente através do teu esforço e de acordos justos é teu. Se alguém ganhou legitimamente o que tem, então a distribuição que daí resulta é justa — independentemente de poder ser desigual. Ainda que outros tenham muito menos, ninguém tem o direito de se apropriar das tuas posses. Esquemas (como taxas diferenciadas de impostos) que forçam a redistribuição de riqueza são errados porque violam o teu direito à propriedade. Roubam o que é teu para dar a outros.
Quanto devem ganhar os médicos? Segundo Nozick, devem ganhar seja o que for que ganhem legitimamente. Numa sociedade podem ganhar praticamente o mesmo que qualquer outra pessoa; noutra, podem ganhar grandes somas de dinheiro. Nos dois casos, são titulares do que ganham — e qualquer esquema que lhes retire os seus ganhos para ajudar outros é injusto.
Que perspectiva devemos preferir, a de Rawls ou a de Nozick? Se apelarmos a intuições morais, ficaremos num impasse; as intuições liberais estão de acordo com Rawls, enquanto as intuições libertárias estão de acordo com Nozick. Contudo, eu afirmaria que a consistência racional favorece algo de parecido com a perspectiva de Rawls. Imagina uma sociedade organizada segundo a concepção de mercado livre de Nozick e na qual, depois de várias gerações, há um grande fosso entre ricos e pobres. Aqueles que nasceram numa família rica são ricos, e aqueles que nasceram numa família pobre sujeitam-se a uma pobreza que não podem vencer. Imagina que tu e a tua família sofrem desta pobreza. Se estiveres nesta situação, poderás desejar que os princípios de Nozick sejam seguidos?

Harry Gensler
John Carroll University, Cleveland, USA

Tradução de Faustino Vaz
Extraído de Ethics: A contemporary introduction, de Harry Gensler (Routledge, 1998)

terça-feira, dezembro 01, 2009

Da incoerência de nossas ações


Os que se dedicam à crítica das ações humanas jamais se sentem tão embaraçados como quando procuram agrupar e harmonizar sob uma mesma luz todos os atos dos homens, pois estes se contradizem comumente e a tal ponto que não parecem provir de um mesmo indivíduo. Mário, o Jovem, ora parece filho de Marte ora filho de Vênus. Dizem que o Papa Bonifácio VII assumiu o papado como uma raposa, conduziu-se como um leão e morreu como um cão. E quem diria que Nero, essa verdadeira imagem da crueldade, como lhe apresentassem para ser assinada, de acordo com a lei, a sentença contra um criminoso, observou: – Prouvera a Deus que eu não soubesse escrever! – tanto lhe apertava o coração condenar um homem à morte. Há tantos exemplos semelhantes, e tão facilmente os encontrará sozinho quem quiser, que estranho ver por vezes gente de bom senso procurando juntar tais contradições, mesmo porque a irresolução me parece ser o vício mais comum e evidente de nossa natureza, como o atesta este verso de Públio, o satírico: “Má opinião, a de que não se pode mais mudar.”
É aparentemente possível julgar um homem pelos fatos mais comuns de sua vida; mas, dada a instabilidade natural de nossos costumes e opiniões, pareceu-me muitas vezes que os melhores autores erravam em se obstinar a dar de alguém uma idéia bem assentada e lógica. Adotam um princípio geral e de acordo com este ordenam e interpretam as ações, tomando o partido de as dissimular quando não as deformam para que entrem dentro do molde preconcebido. O imperador Augusto escapou-lhes; deparamos nesse homem com uma tal flagrante diversidade de ações, tão inesperada e contínua no decurso de sua existência, que os mais ousados juízes, renunciando a julgá-lo em seu conjunto, tiveram de deixá-lo assim indefinido. Acredito que a constância seja a qualidade mais difícil de se encontrar no homem, e a mais fácil a inconstância. Quem os julgasse pormenorizadamente de acordo com seus atos, um por um, estaria mais apto a dizer a verdade a seu respeito.
Fora difícil encontrar em toda a antigüidade uma dúzia de homens que tenham orientado sua vida em obediência a determinado princípio, o que é o fim principal da sabedoria. A qual, segundo um autor antigo [Sêneca], se resume em uma frase que enfeixa, em uma só, todas as regras da vida: “querer e não querer são sempre a mesma e a única coisa”. E poderia acrescentar: à condição de que o que queremos ou não queremos seja justo, pois, se não o é, impossível se faz que permaneça constantemente a mesma coisa. Efetivamente, sei de há muito que o vício nada mais é senão desregramento e falta de medida e por conseguinte não o podemos imaginar constante. Atribui-se a Demóstenes a seguinte máxima: a virtude, qualquer que seja, consiste de início em recolhimento e deliberação; a constância, a seguir, comprova-lhe a perfeição. Em refletindo seguimos sempre o melhor caminho, mas ninguém pensa antes de agir. “Desdenha o que pediu, volta ao que largou e, sempre hesitante, contradiz-se sem cessar” (Horácio).
Nossa maneira habitual de fazer está em seguir os nossos impulsos instintivos para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo, segundo as circunstâncias. Só pensamos no que queremos no próprio instante em que o queremos, e mudamos de vontade como muda de cor o camaleão. O que nos propomos em dado momento, mudamos em seguida e voltamos atrás, e tudo não passa de oscilação e inconstância. “Somos conduzidos como títeres que o fio manobra” (Horácio).
Não vamos, somos levados como objetos que flutuam, ora devagar, ora com violência, segundo o vento: “Acaso não vemos todo mundo indeciso; uns procurando sem descontinuar, outros mudando de lugar, como para largar uma carga pesada demais?”(Lucrécio). Cada dia nova fantasia, e movem-se as nossas paixões de acordo com o tempo: “o pensamento dos homens assemelha-se na terra aos cambiantes raios de luz com que Júpiter a fecunda”(Cícero).
Hesitamos em tomar partido; nada decidimos livremente, de maneira absoluta, coerente. Se alguém traçasse e estabelecesse determinadas leis de conduta e regime político de vida, veríamos brilhar em seus atos e atitudes uma harmonia cabal e em seus costumes uma ordem e uma correlação evidentes. Empédocles observa a seguinte contradição entre os agrigentinos: alguns se entregam aos prazeres como se devessem morrer no dia seguinte e outros edificam como se a vida não tivesse de acabar jamais. O plano de vida fora entretanto fácil de se estabelecer, como se vê em Catão, o Jovem: quem nele toca uma tecla, toca todas, pois há nele uma harmonia de sons bem afinados que nunca se entrechocam. Não seguimos, nós outros, tão sábio exemplo e cada uma de nossas ações decorre de um juízo específico. E na minha opinião seria melhor procurar-lhes as causas nas circunstâncias do momento sem mais aprofundada pesquisa e sem tirar delas quaisquer conseqüências.
Durante as desordens que agitaram nosso pobre país, disseram-me que uma jovem, bem perto do local onde eu me encontrava, se jogara pela janela a fim de escapar à brutalidade de um soldado que hospedava. Não teve morte instantânea e para se acabar tentou cortar o pescoço com uma faca, o que não a deixaram fazer. Nesse triste estado, confessou que o soldado nada mais fizera do que lhe declarar seu amor, solicitá-la e presenteá-la, mas ela temera que chegasse a violentá-la. Daí seus gritos, sua atitude, o sangue derramado, como se se tratasse de uma nova Lucrécia. Entretanto, eu soube que antes e depois dessa ocorrência sempre se mostrou muito menos arisca. Como dizem por aí, “por mais belo e decente que sejas, se não és aceito pela tua amada, não concluas, sem mais amplas informações, ser ela de uma castidade a toda prova; isso não impede que o arrieiro tenha a sua possibilidade”.
Antígono, que se afeiçoara a um de seus soldados por causa de sua valentia e coragem, mandou que o médico tratasse de uma doença que o atormentava havia muito. Observando, após a cura, que o homem se expunha muito menos nos combates, perguntou qual a razão dessa mudança que o tornara poltrão: “Vós mesmo, Sire, porquanto me libertastes dos males que faziam com que eu não apreciasse a vida.”
Um soldado de Luculo fora roubado pelo inimigo. Para se vingar executou contra ele um golpe de mão notável, amplamente compensador de seus prejuízos. Luculo que ficara com excelente opinião dele quis empregá-lo em uma arriscada expedição e, afim de decidi-lo, usava todos os meios de persuasão, “com palavras capazes de entusiasmar os mais tímidos”(Horácio). Mas o soldado atalhou: “Mandai algum soldado miserável que tenha sido roubado.” E recusou peremptoriamente. Como diz Horácio: “Irá quem tiver perdido a bolsa.”
Maomé II admoestara violentamente Chasan, chefe de seus janízaros cuja tropa fora desfeita pelos húngaros, sendo que se conduzira ele próprio covardemente durante o combate. Como única resposta, Chasan, sozinho, sem precisar de ninguém, precipitou-se furioso, espada na mão, contra o primeiro pelotão inimigo que percebeu e desapareceu em poucos instantes como se fora por ele tragado. Nesse ato, parece que foi movido menos pelo desejo de se reabilitar do que em virtude de uma reviravolta em seus sentimentos: Não agia sob o impulso da coragem moral e sim por despeito. Quem ontem vistes tão temerário, não vos espanteis em vê-lo poltrão no dia seguinte. A cólera, a necessidade, a companhia ou o vinho, ou o som de uma trombeta, terão feito de suas tripas coração. Não foi o raciocínio que lhe deu coragem: foram as circunstâncias. Não nos espantemos, pois, de ver que mudou ao mudarem elas. Essa variação e essa contradição, tão comuns em nós, levaram muitas pessoas a pensar que possuímos duas almas, ou duas forças que atuam cada qual num sentido, uma no sentido do bem e outra no do mal. Uma só alma e uma só força não poderiam conciliar-se com tão repentinas variações de sentimentos.
Não somente o vento dos acontecimentos me agita conforme o rumo de onde vem, como eu mesmo me agito e perturbo em conseqüência da instabilidade da posição em que esteja. Quem se examina de perto raramente se vê duas vezes no mesmo estado. Dou à minha alma ora um aspecto, ora outro, segundo o lado para o qual me volto. Se falo de mim de diversas maneiras é porque me olho de diferentes modos. Todas as contradições em mim se deparam, no fundo como na forma. Envergonhado, insolente, casto, libidinoso, tagarela, taciturno, trabalhador, requintado, engenhoso, tolo, aborrecido, complacente, mentiroso, sincero, sábio, ignorante, liberal e avarento, e pródigo, assim me vejo de acordo com cada mudança que se opera em mim. E quem quer que se estude atentamente reconhecerá igualmente em si, e até em seu julgamento, essa mesma volubilidade, essa mesma discordância. Não posso aplicar a mim um juízo completo, sólido, sem confusão nem mistura, nem o exprimir com uma só palavra. “Distingo” é o termo mais encontradiço em meu raciocínio.
Embora acredite sempre que é preciso falar bem do que é justo e interpretar com simpatia o que a tal juízo se presta, nossa condição é tão singular que não raro o próprio vício nos impele a bem fazer (se o bem não se julgasse unicamente pela intenção que o determina). Daí não se dever tirar de um ato corajoso a conclusão de que um valente o praticou. Valente será efetivamente quem o for sempre em todas as ocasiões. Se fosse um hábito e não u gesto imprevisto, a virtude faria que um homem mostrasse sempre igual resolução; seria o mesmo, só ou acompanhado, na justa como no campo de batalha. Suportaria esse homem, com igual atitude uma enfermidade em seu leito e um ferimento na guerra e não temeria mais a marte em seu lar do que em um assalto. Não o veríamos lançar-se através de uma brecha com insopitável bravura e em seguida chorar como uma mulher a perda de um processo ou de um filho; ser covarde diante da infâmia e resoluto na miséria, ter medo da navalha do barbeiro e desafiar a espada do adversário. Em tais casos, a ação é louvável, não o homem. Há gregos, diz Cícero, que tremem à vista do inimigo e se mostram tenazes quando enfermos, e tem-se o inverso nos cimbros e nos celtiberos: “Nada pode ser estável se não parte de um princípio sólido”(Cícero).
Não há maior valentia, no gênero, do que a de Alexandre, o Grande, e no entanto não se verifica em tudo. Por incomparável que seja, tem suas falhas, o que o faz perturbar-se à mais insignificante suspeita de conjuras e o leva a incrível e absurda crueldade na repressão e a temores em nada compatíveis com sua apreciação habitual das coisas. A superstição que lhe era peculiar participa também da pusilanimidade, e a exagerada penitência que se impõe a si mesmo após o assassínio de Clito prova igualmente a desigualdade de sua coragem. Somos um amontoado de peças juntadas inarmonicamente e queremos que nos honrem quando não o merecemos. A virtude vale por si mesma; se para outro fim tomamos a sua máscara, logo ela no-la arranca da cara. Quando nossa alma se impregna dela, forma ela uma espécie de verniz fortemente adesivo que só se tira com a própria pele. Eis por que para julgar um homem é preciso seguir suas pegadas, penetrar sua vida, e se não deparamos com a constância alicerçando seus atos, “com um plano de vida bem ponderado e previsto”(Cícero), se sua marcha, ou antes, seu caminho (pois é lícito acelerar ou diminuir o passo) se modifica segundo as circunstâncias, abandonemo-lo. Como a ventoinha gira de acordo com o vento, assim reza a divisa de nosso Talbot.
Não é de espantar, diz um autor antigo, que o acaso tenha tanta força sobre nós, pois por causa dele é que existimos. Quem não orientou sua vida, de um modo geral, em determinado sentido, não pode tampouco dirigir suas ações. Não tendo tido nunca uma linha de conduta, não lhe será possível coordenar e ligar uns aos outros os atos de sua existência. De que serve fazer provisão de tintas se não se sabe que pintar? Ninguém determina do princípio ao fim o caminho que pretende seguir na vida; só nos decidimos por trechos, na medida em que vamos avançando. O archeiro precisa antes escolher o alvo; só então prepara o arco e a flecha e executa os movimentos necessários; nossas resoluções se perdem porque não temos um objetivo determinado. O vento nunca é favorável a quem não têm um porto de chegada previsto. Não estou de acordo com o juízo que se fez, ao assistir a uma tragédia de Sófocles, declarando-o, contra a opinião de seu filho, capaz de administrar seus bens. Não acho tampouco muito mais lógico o que fizeram os párias enviados com missão de reformar o governo dos milésios. Depois de visitar a ilha, observando o cultivo cuidadoso da terra, a boa ordem das propriedades, e registrando os nomes dos proprietários, considerando que a atenção e a eficiência demonstradas na administração de seus negócios particulares eram uma garantia de que de igual modo iam gerir os negócios do Estado.
Somos todos constituídos de peças e pedaços juntados de maneira casual e diversa, e cada peça funciona independentemente das demais. Daí ser tão grande a diferença entre nós mesmos quanto entre nós e outrem: “Crede-me, não é coisa fácil conduzir-se como um só homem”(Sêneca). Se a ambição pode impelir o homem a ser valente, sóbrio, liberal e mesmo justo, se a avareza pode dar coragem a um caixeiro criado no ócio e na indolência e infundir-lhe bastante confiança para que se lance à aventura em frágil navio, à mercê de Netuno, e lhe ensina a discrição e a prudência; se a própria Vênus arma de resolução a audácia o jovem ainda sob a autoridade paterna, e faz com que se mostre impudica a virgem de coração terno ainda sob a égide de sua mãe:
“Passando furtivamente entre os guardas que dormem, protegida por Vênus, vai a jovem sozinha, dentro da noite, juntar-se a seu amante”(Tibulo), se assim é, não deve um espírito refletido julgar-nos pelos nossos atos exteriores; cumpre-lhe sondar as nossas consciências e ver os móveis a que obedecemos. É uma tarefa elevada e difícil e desejaria por isso mesmo que menor número de pessoas se dedicassem a ela.


Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592)
(In: Ensaios, Michel de Montaigne; tradução de Sérgio Milliet, 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp. 159-162)