quarta-feira, novembro 18, 2009

TEIMOSIA

UM CASO DE TEIMOSIA
De Romano Dazzi

A velha senhora chegou de surpresa e:
-Vamos! – ordenou. – Estou com pressa!
José levantou lentamente a cabeça, olhou para um lado, olhou para o outro, largou o sapato que estava reformando e:
- É comigo? - perguntou com falsa inocência.
- Sim, meu lindo, é com você mesmo! Vamos!
- Não senhora – respondeu calmamente o José – Não vou, não.
- Como, não? Que novidade é essa? Estou mandando; vamos!
- Já disse que não vou e não vou. Pronto. Não vou a lugar nenhum - repetiu o José, agora com ar desafiador.
- Como se permite recusar? Você sabe quem eu sou?
- Sei, sim senhora.
- Então vamos ...Vamos embora!
Mas o José continuava firme, sacudindo a cabeça, recusando-se terminantemente a negociar:
- Quantas vezes tenho que repetir que não vou? Você é surda? Você não manda em mim! Volte outra hora!, Volte quando o trigo estiver maduro! E não me aborreça! – protestou decidido..
A velha senhora ficou confusa.
Nunca tinha sido maltratada assim.
Todos tinham por ela pelo menos um grande respeito, mesmo que não se tratasse, propriamente, de consideração; muitos a tinham chamado, em um momento qualquer da vida, pedindo-lhe que viesse resolver algum problema grave. Mas ela não atendia assim, facilmente. Só vinha quando queria.
Pensando bem, ela não conseguia lembrar de ninguém que não tivesse recorrido a ela, mais cedo ou mais tarde.
Mas este José, arrogante, orgulhoso, senhor sabe tudo, era o cúmulo da falta de respeito!
Ela reconhecia não ser uma figura simpática, agradável; a idade, os modos, a forma de aparecer, quase sempre de surpresa, com uma impressionante falta de “timing”, eram mais que criticáveis: eram chocantes.
Mas enfim, no mundo não existem somente pessoas jovens, bonitas e simpáticas. E todos acabam encontrando o seu lugar.
A velha senhora sabia, no fundo, que o José tinha razão; só não queria dar o braço a torcer. Teimosia, por teimosia.
Na sua função, às vezes era chamada a trabalhar duramente, sem descanso, em lugares os mais diversos e disparatados. Frequentemente tinha que correr de um lado para outro sem poder descansar um instante.
Assim, nas raras ocasiões em que o serviço arrefecia, tentava pôr em dia suas tarefas, apressando um pouco o tempo.
É por isso, que tinha chegado ao encontro com o José antes da hora. Mas era só uma questão de poucos anos, nada que fizesse uma grande diferença, diante da eternidade.
Porém, esse era um homem teimoso – e mal educado. Neste momento, ela o odiava. Ah, se pudesse..Mordeu o lábio, arrependida do mau pensamento.
Passaram-se alguns minutos.
Tanto ela quanto o José estavam reconsiderando e procurando colocar panos quentes na situação.
- Velho maluco! – comentou a Senhora, com uma expressão vaga, a esconder uma leve nuance de simpatia – então, você quer ganhar todas, não?
José também desfez a carranca, baixando a guarda e colocando de lado os sapatos consertados.
- Esta tenho que ganhar – comentou aliviado – e você não perde muita coisa, esperando um pouco para me levar...
- Sabe José, no fundo eu gosto de lutadores, gosto de quem resiste e não se dobra e – mesmo sabendo que no fim perderá - me olha firme nos olhos e me desafia. Este apego à vida é uma das melhores qualidades do Homem.
Mas chega de papo; já estou muito atrasada. Acerte o seu relógio, José!
Daqui a trinta anos, dois meses e vinte e um dias, volto para te levar. Adeus!
- Bom, resmungou o José – sou um dos poucos que têm o azar de saber o dia certo em que vão morrer! Até lá, não me preocupo.
Retomou nas mãos o par de sapatos, observou-o com atenção e carinho e comentou: Bom serviço, José! Eu sei mesmo fazer um bom trabalho .....
Passaram-se exatamente 11 039 dias; José já estava bem maduro, cansado por uma longa vida, por muitas lutas, por muitas solas consertadas; sabia que não duraria muito e aguardava o momento com certa impaciência.
Mas era um teimoso incorrigível.
Durante todo o tempo que lhe sobrara, pensava numa forma de enganar a velha, mesmo que fosse para ganhar só alguns instantes.
Assim, quando amanheceu aquele que deveria ser o seu último dia, saiu de casa cedinho, com uma máscara imitando uma caveira e vestindo uma roupa usada e rasgada como a que tinha visto a velha senhora usar.
Era tempo de carnaval e ninguém estranharia o disfarce; às costas, levava uma foice, igualzinha às das cartas de tarô.
Chegando na cidade próxima, porém, viu-se, de repente, cara a cara com outro José; igualzinho, roupa surrada, sapatos impecáveis.
E este José, mostrando-se surpreso e apavorado, começou a gritar:
“É a Morte! Olha a Morte aí! É a Morte! É a Morte! Mata! Mata! Mata ela!”...
Juntou muita gente, cada um com seu medo e sua coragem;
Quando o homem está só, o medo domina-o facilmente. Mas quando está com outros, sua coragem multiplica-se. Chama-se “covardia”
Assim, todos pularam sobre o pobre José, com seu inútil disfarce, sem dar-lhe nenhuma chance. Em cinco minutos, acabaram com ele.
Então a morte, retomando suas feições e rindo como só ela sabe fazer, pegou sua alma e o levou.

Moral: Pode-se enganar todos, a vida toda; mas há um momento em que não podemos enganar ninguém, e muito menos, nós mesmos. Temos que reconhecer este momento e aceitá-lo, com coragem.
É a única maneira bonita de morrer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário