segunda-feira, novembro 09, 2009

CONCEITO DE EMANCIPAÇÃO HUMANA EM MARX



CONCEITO DE EMANCIPAÇÃO HUMANA EM MARX

O problema essencial da filosofia política de Marx em 1843, é o da relação entre a emancipação política do Estado promovida pela revolução burguesa e a emancipação da humana como tal. Na Questão judaica Marx define emancipação enquanto redução do mundo humano ao próprio homem, isto é, enquanto redução dos fundamentos da sociedade em geral às próprias relações humanas, implicando, em particular, no caso do Estado moderno, o traçado dos limites da ação política, opondo-se assim a qualquer forma de tirania, na qual o poder do déspota é limitado apenas por sua própria força, mas também às outras formas clássicas de delimitação que se baseavam em fundamentos transcendentes, religiosos ou não, na medida em que tais limites deviam permanecer no âmbito esboçado pela razão social imanente expressa no direito.
No caso específico da revolução burguesa a emancipação implica uma dupla redução do indivíduo. De um lado cada um é membro da sociedade civil burguesa onde as relações sociais se dão entre indivíduos independentes e egoístas em busca da realização dos seus interesses particulares ao contrário da época feudal na qual as relações davam-se entre indivíduos enquanto membros das suas respectivas classes, baseando-se em privilégios, e de outro lado cada um é, enquanto pessoa moral, cidadão do Estado. No primeiro caso a vida individual encontra-se submetida às estruturas sociais involuntárias, não refletidas, que dizem respeito à produção material, isto é, submetida às relações econômicas, que, como tais não são livremente instituídas, como o direito. Todo o problema consiste em saber quais são os limites do reino do direito ou da liberdade em confronto com as estruturas concretas da sociedade civil; em saber até onde o homem pode estender a autonomia jurídica conquistada pelo Estado. Trata-se de saber qual é o verdadeiro estatuto da separação entre religião e Estado, das liberdades burguesas, a saber, a liberdade de imprensa, extinção dos privilégios políticos das classes, sufrágio universal, direitos universais do homem etc., diante da emancipação da essência humana que supostamente a libertaria dos entraves históricos que impediam sua plena realização no antigo regime.
É o que Marx denomina crítica da emancipação política que lhe permite logo no início de A Questão judaica atribuir a Bruno Bauer o erro de não investigar a relação entre a emancipação política e a emancipação humana. A emancipação política, isto é, a emancipação do Estado burguês, não é o modo radical e isento de contradições da emancipação humana. Anulando a significação política das diferenças sociais, estendendo seus direitos a todos os cidadãos, o Estado burguês mostra-se incapaz de suprimir as premissas materiais da desigualdade: a propriedade privada e toda cultura humana dela derivada como o egoísmo, a concorrência, a pobreza etc. A igualdade política e a idéia de comunidade aí subtendida não se refletem na estrutura efetiva da sociedade fundamentada sobre a desigualdade entre proprietários e não proprietários. Nesse sentido o Estado político acabado, quer dizer, o Estado plenamente emancipado, é, por sua própria essência, a vida genérica do homem, porém oposta à vida real da sociedade civil burguesa na qual cada indivíduo atua como particular, considerando a outros homens como meio, degradando-se a si próprio como meio e convertendo-se em joguete de poderes estranhos.
Por esta via no Estado burguês perante o qual o indivíduo é considerado, de acordo com a verdadeira natureza da sua essência humana, um ser universal, como cidadão, esta essência se encontra apenas imaginária e abstratamente liberta dos empecilhos que impedem sua realização efetiva. A generalidade do Estado burguês, a generalidade do cidadão é apenas abstrata, irreal, imaginária. Ora, para a tradição do pensamento político moderno, notadamente no idealismo alemão ao qual Marx encontra-se intimamente vinculado, o principal problema consiste em determinar as condições de realização através do Estado ou nele próprio, da racionalidade total da vida humana. Em outros termos a vida política deve espelhar a comunidade originária constitutiva da idéia de humanidade enquanto reveladora da verdadeira natureza essencial do homem, natureza que não apenas era contrariada pela antiga sociedade feudal baseada em privilégios e castas, como também parece ainda não realizada pelas relações que os indivíduos estabelecem entre si, na sociedade civil, mediatizadas pelas determinações econômicas do capital: propriedade privada, trabalho assalariado, produção de mercadorias, concorrência, crises de mercado, pobreza, etc.. O objeto mais essencial dos sentidos humanos é o próprio homem. Unicamente no olhar do homem sobre o homem se acende a luz da consciência e do entendimento.
Convém, portanto explicitar a que conceito de essência humana que Marx se refere ao criticar a emancipação política do Estado burguês, explicitando, ao mesmo tempo os fundamentos ontológicos segundo os quais esta essência será concebida. A ontologia presente na elaboração marxiana da essência humana é a ontologia de Hegel, a saber, do ser universal, mas tal como Feuerbach a interpreta mediante o conceito de gênero ou espécie que passa doravante a assumir o posto de novo e verdadeiro universal concreto. De acordo com este ponto de vista o gênero humano consiste no conjunto dos predicados que definem, para cada indivíduo, as potencialidades essenciais que sua existência pode realizar parcialmente. O homem, como tal, nada mais é do que a idéia de um indivíduo cuja vida desenvolvesse em si a totalidade de tudo que a essência genérica contém a título de possibilidade. Não há dúvida que a emancipação política representa um grande progresso. Embora não seja a última etapa da emancipação humana em geral, ela se caracteriza como a derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto do mundo atual. É óbvio que nos referimos à emancipação real, à emancipação prática.
Evidentemente o homem não existe em parte nenhuma. Só os indivíduos têm existência, vida e realidade. Essa observação se aplica a toda relação entre gênero e indivíduo. Mas no que tange aos indivíduos humanos ninguém realiza em sua vida a totalidade das potencialidades do seu gênero, conhecendo todas as coisas que o homem pode conhecer ou fazendo tudo o que a humanidade considerada em seu conjunto pode fazer. Cada vida individual é limitada quando contraposta às outras existências e à totalidade das potencialidades inerentes ao gênero humano como tal. Cada indivíduo não realiza em sua existência senão uma parcela de tudo aquilo que a humanidade pode realizar. De acordo com Marx e com a filosofia de Feuerbach, onde Marx, a razão dessa limitação não reside, inicialmente, nas estruturas práticas da vida social, a saber, no conjunto das relações econômicas que os indivíduos estabelecem entre si enquanto produtores e consumidores, proprietários e trabalhadores, homens e mulheres. Não é por ser proletário, por exemplo, que a pobreza da situação econômica exclui do indivíduo a possibilidade de desenvolver a cultura, inteligência, sensibilidade estética etc. Essa limitação existe de fato, mas encobre a finitude essencial inerente ao caráter genérico do próprio ser da vida humana. A finitude da existência individual e a oposição do particular ao universal que a atravessa, são determinações metafísicas relativas à natureza genérica da essência humana.
Emancipação política é a atividade prática através da qual os indivíduos tentam superar os antagonismos da sociedade civil a fim de formarem uma comunidade orgânica de interesses harmoniosos fundada na razão. Por esta via cada indivíduo só participaria efetivamente da sua essência humana enquanto membro do Estado. Também só através do Estado seríamos livres, liberados do sistema das necessidades e dos interesses e igualados numa mesma obediência à lei. Essa última, na medida em que constrange os indivíduos identicamente, em que todos são iguais perante ela, já faz abstração de todas as diferenças, de classe, de profissão, de interesse particular, de riqueza, de raça etc., abolindo todo privilégio social ou individual. Assim fazendo a lei nos situa diante da própria essência comum e universal do homem interpelando os indivíduos enquanto seres de razão dotados de liberdade e de responsabilidade pelos seus atos, a partir da vontade universal encarnada pelo Estado, seu guardião. Diante do Estado, situados na mira do seu ponto de vista universal, sob sua luz, os indivíduos seriam o que são essencialmente: homens.
Emancipação humana é a recondução do mundo humano, das relações, ao próprio homem. A emancipação política é a redução do homem, de um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a cidadão do Estado, a pessoa moral. Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas forcas próprias como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana.
Marx encontra-se de acordo com a idéia de que a essência humana é universal. Porém, se para Hegel a realização dessa essência reside, não só na estrutura política do Estado como tal, mas na sua emancipação, em sua autonomia e precedência em relação à sociedade civil, para Marx ela reside na sociedade como tal. Não é na relação dos indivíduos com o Estado, mas na relação e na interdependência dos indivíduos entre si, na vida social cotidiana e efetiva, que deve ser encontrada a verdadeira realização da essência genérica do homem.
Marx diz que o indivíduo é o ser social. O significado desta identificação clarifica imediatamente ao afirmar que mesmo quando a manifestação da vida do indivíduo não aparece imediatamente sob a forma de uma manifestação coletiva, efetuada com os outros e ao mesmo tempo que eles, ela é ainda uma afirmação da vida social. Assim a manifestação social da vida individual não é necessária nem primeiramente uma existência coletiva. Ao contrário, a manifestação primeira da determinação social da vida individual reside na relação imanente desta vida à essência universal, relação sem a qual não haveria nenhuma intersubjetividade e, portanto, nenhuma vida coletiva possível. Trata-se de passagem necessária para uma sociedade sem propriedade privada e, portanto, sem classes, sem divisão do trabalho, sem alienação e sobre tudo, sem estado. Para Marx, o comunismo é “o retorno completo e consciente do homem a si mesmo, como homem social, isto é, como homem humano”.

Marcilio Reginaldo       



REFERÊNCIAS:
REALE, G. ANTIUSSERI, D. História da Filosofia, vol. 5. Do romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005.
MARX, K. A Questão Judaica. São Paulo: Moraes, 1991.

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